Recentemente, fui convidado para palestrar em um evento em alusão aos 10 anos do Maio Amarelo, que reuniu mais de 400 jovens entre 14 e 17 anos de algumas escolas de Tupanciretã, município do centro-oeste gaúcho. Por se tratar de um evento que teve início às 9:00 da manhã, viajei na noite anterior e pernoitei em um hotel na cidade de Santa Maria, onde cheguei por volta das 2:00 da madrugada.
Ainda um pouco desorientado, em parte pelo sono e em parte por ser aquela a minha primeira vez na cidade, procurei seguir as placas de emergência que indicavam a saída da rodoviária. Ao final de um largo corredor, avistei um carro deixar, logo após o embarque do passageiro, o que pensei ser, provavelmente, um ponto de táxi. Enquanto me aproximava, outro veículo encostou. Estava certo, ali era o ponto de táxi.
Com a desculpa de procurar o endereço do hotel, assim que o motorista iniciou o deslocamento, me precavi e pesquisei o mesmo no Maps enquanto espiava o taxímetro. "Só porque não conheço a cidade não é motivo para deixar ser enganado por um motorista daqueles que escolhem sempre o caminho mais longo" - pensei.
Eis que, em uma das diversas esquinas pelas quais o carro convertera, fui invadido por uma estranha familiaridade, quase um dejavu. "Não é possível... eu nunca estive aqui!" - pensei comigo mesmo. Voltei ao Maps para buscar algum subsídio, o qual me informava estar agora na Rua dos Andradas. Novamente, um novo sentimento de que o local não me era estranho...
Vi essa essa sensação crescer ainda mais, quase a ponto de me consumir, quando voltei os olhos para a janela traseira direita do carro que me levava e enxerguei um paredão alto, que parecia ser os fundos de um imponente prédio. Um estacionamento, na verdade. Mas pintado de um tom de verde inconfundível. Antes mesmo que eu pudesse buscar na memória de qual estabelecimento pertencia aquele prédio, enxerguei o logo da famosa marca de supermercados francesa. Foi só então que me dei conta de onde estava.
Girei a cabeça para o lado oposto da rua e lá estava a fachada negra do prédio que um dia abrigara a famosa casa noturna. E, por um milésimo de segundo, fechei meus olhos na esperança, ainda que inútil, de "desver" aquilo que já se viu. E na minha mente, durante aquele pequeno lapso temporal, aquela deserta rua deu lugar ao caos, onde diversas ambulâncias e caminhões de bombeiros dividiam espaço com pilhas de corpos já sem vida. Como alguém em uma crise de transtorno dissociativo, pude me enxergar naquele lugar, mesmo que nunca tivesse estado lá (pelo menos não pessoalmente), como que me vendo em uma cena de filme (o qual eu assistira recentemente). Pude ouvir os gritos e gemidos de dor em meio ao som das sirenes, ver as lágrimas e o terror nos rostos daqueles que conseguiam sair do prédio e, em dado momento, até mesmo o cheiro da fumaça pude sentir.
Então voltei a abri os olhos e aquela cena de terror deu lugar novamente apenas àquela fachada escura em uma rua deserta do centro da cidade. Quando o silencioso motorista parou no semáforo da esquina, pensei em perguntar se, de todos os caminhos possíveis, aquela era uma mórbida rota costumeiramente escolhida pelos taxistas da cidade para mostrarem o famoso prédio da boate aos turistas. "Indelicadeza a minha... pode até ter perdido um ente querido no incêndio!" - pensei. Preferi imitá-lo e seguir o restante da viagem em silêncio.
Preferi pensar que fora apenas uma coincidência. Assim como a coincidência de que, exatamente no ano que em se comemoram os 10 anos do Maio Amarelo, há 10 anos morriam 242 pessoas no incêndio da boate Kiss. Um evento sem sombra de dúvidas lastimável, mas que serviu para que diversas leis e normas fossem criadas no sentido de prevenir que desastres semelhantes ocorressem.
No entanto, só no Brasil, nos últimos 10 anos, o trânsito já vitimou o equivalente a mais de 1.600 boates Kiss! E pouco (ou quase nada) tem sido feito para que essa situação se modifique. A questão que me fica é: quando vamos tratar de fato essa espécie de crise de transtorno dissociativo do trânsito, onde nos vemos em um trânsito do qual parecemos (ou fingimos) não fazer parte?
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