CAMINHAR À SOMBRA DOS AUTOMÓVEIS: UMA REFLXÃO SOBRE PRIORIDADE URBANA
- Rodrigo Vargas

- há 5 minutos
- 3 min de leitura

Conversava com um antigo colega por mensagens de texto. Ele contava que estava em um seminário de mobilidade da prefeitura. Entre lembranças de memórias antigas e promessas de um futuro churrasco (que está há tempos sendo marcado, mas nunca sai), ele me conta espantado sobre uma descoberta que havia feito há pouco durante o evento:
- A iluminação pública nas ruas é para os automóveis, e não para os pedestres.
Com certo surpresa por ele nunca ter pensado nisso durante os vários anos que trabalhamos com educação para o trânsito, respondi "Sim... tu nunca tinha percebido isso?! Na verdade, de maneira geral, as cidades são todas pensadas para os carros!"
No mesmo instante, lembrei da reflexão que trouxe no artigo FAIXA DE SEGURANÇA: A ILUSÃO DA PRIORIDADE DO PEDESTRE, no qual questiono a prioridade urbana. É curioso pensar que quando um veículo sai de um estacionamento e encontra um pedestre circulando pela calçada, o motorista (na maioria das vezes) reduz a velocidade e dá passagem. Porém, quando o mesmo pedestre se desloca alguns centímetros e pisa em uma faixa de segurança, a mágica desaparece: o que antes era um ser humano digno de respeito se torna um mero obstáculo na via. Tudo porque a faixa de pedestres não é vista por ninguém como uma extensão da calçada, mas apenas mais uma sinalização voltada aos veículos.
Aliás, as próprias calçadas não são vistas como parte da via e são, muitas vezes, formadas por "sobras das faixas de rolagem". E essa constatação simples de que até a luz das ruas não é pensada para quem caminha, revela algo incômodo sobre nossa relação com a cidade: naturalizamos tanto a centralidade do automóvel que deixamos de perceber o óbvio. Fomos educados para ler a cidade a partir do para-brisa.
Quando lembramos que uma faixa de segurança não amplia o território do pedestre, mas apenas demarca o espaço em que o carro “deve” parar, fica evidente que a prioridade do pedestre não é uma regra prática: é um enfeite normativo. Funciona quando não atrapalha o fluxo. Some quando exige uma renúncia.
A cidade que construímos — e continuamos renovando — opera nessa lógica. Calçadas estreitas, fragmentadas, escuras, desconfortáveis. Travessias longas, demoradas e mal coordenadas. Áreas de espera insuficientes. Tudo isso comunica silenciosamente uma mensagem poderosa: aqui, o pedestre é tolerado; o carro, celebrado.
E talvez seja por isso que, para tantos, a reflexão do meu colega pareça uma epifania. Porque, apesar de termos trabalhado anos com educação para o trânsito, vivemos imersos numa configuração urbana que nos ensina diariamente a priorizar quem está ao volante.
Mas não precisa ser assim. Quando reconhecemos essa assimetria, damos o primeiro passo para transformá-la. Uma cidade verdadeiramente humana começa quando devolvemos ao pedestre não apenas o direito de passar, mas o direito de existir sem pedir licença. Começa quando entendemos que caminhar não é um obstáculo para o progresso, é a base dele.
No fundo, não estamos falando apenas de urbanismo, mas de valores. De que tipo de convivência queremos promover. De que vidas escolhemos facilitar e de quais seguimos ignorando. Talvez o maior desafio seja justamente esse: reaprender a enxergar a cidade não de cima de um carro, mas do chão. Porque é ali, no passo lento e vulnerável de quem caminha, que descobrimos a verdadeira medida de uma cidade justa.















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