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  • “MEU CARRO, MINHA VIDA”

    O programa Minha casa, minha vida é um programa do Governo Federal criado em ano de 2009 com o intuito de proporcionar financiamento habitacional a famílias de baixa renda. Desde sua criação, milhares de famílias tiveram a oportunidade de realizar o sonho de adquirirem a casa própria. Esse fato denota uma melhoria das condições de vida de grande parte da população, considerando o significado que uma casa tem: um lugar de proteção, de privacidade, de conforto, de aconchego, etc. Receba novas postagens direto no seu WhatsApp. No entanto, como demonstra a psicóloga Neuza Corassa, para maior parte das pessoas há não apenas uma identificação com seus carros, mas elas acabam “trazendo” suas próprias casas para dentro de seus carros. Com a correria da vida moderna bem como os engarrafamentos diários, como alternativa para otimizar, precisamos transformar o carro em extensões da nossa casa. E, assim como os diferentes cômodos da casa tem suas diferentes funções, diversas são as funções que atribuímos aos nossos veículos: a função de sala de estar, como quando as optamos por sair num único carro para conversar; copa/cozinha, quando fazemos refeições no carro; escritório, quando, com o carro parado, damos retorno às ligações e manuseamos documentos; quarto, utilizado para um cochilo no intervalo do trabalho; sala de som, os cds preferidos são levados para o carro; despensa, ao transportar as compras ou estocar algo no carro; banheiro, retocar a maquiagem, trocar fraldas do bebê ou mesmo barbear-se. Porém, o fato de dirigirmos e usarmos nossos carros como uma extensão de nossas casas, assim como afirma Corassa, acaba por nos dar a falsa impressão de que temos o direito de agirmos tão à vontade como se de fato estivéssemos lá. Mas é preciso lembrar que o trânsito se dá em vias públicas, ou seja, ao lado de outros condutores com seus valores pessoais. E essa ambivalência é responsável pela maior parte dos conflitos no trânsito. Em “ O que faz o brasil, Brasil? ” e “ A casa e a rua ”, o antropólogo Roberto DaMatta tece interessantes considerações acerca desses dois diferentes espaços que, segundo ele, são muito mais que espaços físicos e geográficos, mas espaços carregados de sentidos, capazes de revelar como vive e pensa a sociedade. Para DaMatta, O Espaço Privado, ou Mundo da Casa, pode ser definido como o local da moradia, da calma e da tranquilidade. É o refúgio, onde se é membro perpétuo de uma corporação – em casa somos únicos e insubstituíveis. Tudo em casa é belo, bom e decente. Já o espaço público, ou Mundo da Rua, é o espaço reservado ao movimento, ao perigo, à tentação, ao logro. Na rua, as pessoas são indiferenciadas e desconhecidas. Podemos dizer que os indivíduos não têm nome nem face. Referimo-nos a eles em termos genéricos (como povo e massa). É o lugar da luta (trabalho ou batente), da batalha, onde a dureza da vida pode ser mais bem percebida ou sentida. Entretanto, no Brasil ocorre um fenômeno interessante nos espaços públicos, assim como aponta DaMatta em um de seus mais recentes estudos: a privatização do espaço público. Ou seja, tomamos o espaço público como se fosse meu, embora não cuide do mesmo e nem mesmo reconheço como sendo um espaço de mais alguém. Com efeito, instala-se um espaço da competição, do salve-se quem puder, tornando-se, assim como o autor afirma, “uma terra de ninguém”. Mas, apesar de todos os incentivos do governo federal para que um maior número de pessoas possa adquirir uma casa própria, não são todos que alcançam tal objetivo. Para esses, o governo parece ter criado uma alternativa que, se não resolve, ao menos tem amenizado o problema dos “sem moradia”. E para a aquisição do carro? Através de manobras como a redução ou mesmo isenções no IPI (Imposto Sobre Produtos Industrializados) dos automóveis novos, o Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, gasta entre R$ 10,7 bilhões e R$ 24,3 bilhões – ou 86% de todos os subsídios das três esferas de governo. Sobra para o transporte público apenas 14% – ou algo em torno de R$ 2 bilhões. Tais manobras, somadas às facilitações nos financiamentos e linhas de créditos para a compra dos mesmos e mais uma infinidade de artifícios que bem poderiam ser nomeado de “Programa Meu carro, minha vida”, já que o carro supostamente veio a melhorar as condições de vida de mais outros tantos milhões de famílias. E, mesmo que essas famílias não tenham sido contempladas com a sorte de terem um lar, não possam se dizer “livres do aluguel” ou mesmo de viverem em um local digno, o carro veio ao seu auxílio trazendo a tão sonhada proteção, a privacidade, o conforto e o aconchego. O carro, neste sentido, passa efetivamente a ter dimensão de território. Tem interesse pelo assunto? Gostaria de ler mais textos como esse? Então adquira agora o meu livro!

  • RECLAMAR OU COMUNICAR? A TÊNUE LINHA ENTRE O DIREITO E A RESPONSABILIDADE

    Ontem, ao sair do meu apartamento, notei que o botão utilizado para chamar o elevador estava desencaixado da parede, pendurado pelos fios. A cena me chamou atenção. Hoje pela manhã, ao encontrar o botão ainda no mesmo estado, imaginei que a síndica do condomínio talvez nem soubesse da situação. Resolvi avisá-la. De fato, ela não havia sido informada — tampouco pelos moradores dos outros quatro apartamentos do andar. Lembrei-me então do período em que fui síndico. Em um condomínio com seis torres de onze andares, problemas assim podem facilmente passar despercebidos por 24 horas ou até mais. Ainda assim, não era incomum ver moradores indo às redes sociais para denunciar que “a luz da entrada do bloco C está queimada há dias” ou que “a torneira da pia do quiosque 4 está pingando há semanas”, como se isso bastasse para resolver o problema — ou, talvez, como se o objetivo nem fosse a solução, mas a exposição pública. Esse episódio me fez pensar nas reclamações que muitas pessoas fazem pelas redes sociais aos órgãos gestores municipais. Quando alguém grava um vídeo mostrando um buraco na rua ou faz um post indignado sobre a coleta de lixo, fico me perguntando: essa pessoa quer mesmo resolver o problema ou quer “causar” nas redes sociais? Será que ela conhece os canais adequados para encaminhar a demanda? Ou será que os próprios órgãos públicos não tornam esse acesso mais difícil do que deveria ser? Há, sim, um desafio de comunicação entre cidadão e gestão. E ele passa por três questões fundamentais: a responsabilidade do cidadão em comunicar pelos meios certos, a necessidade dos órgãos públicos em tornar esse acesso menos burocrático e mais acolhedor, e, por fim, a cultura digital em que tudo vira post antes de virar providência. O certo é que, tanto o condômino quanto o cidadão têm não só o direito, mas a obrigação de cobrar. Cobrar quando uma luz do corredor ou do poste está queimada. Cobrar quando o lixo não é recolhido ou quando um horário não é cumprido — seja o do silêncio no condomínio ou o do ônibus que atrasa na parada. Mas cobrar exige algo anterior: comunicar. Comunicar com responsabilidade, empatia e senso de comunidade. Antes de ir às redes sociais, que tal ir à portaria, ao e-mail da síndica, ao 156 ou ao protocolo digital da prefeitura? Reclamar é legítimo, mas contribuir para a solução é ainda mais poderoso.

  • SUA CATEGORIA JÁ FOI VACINADA?

    Em regime de Home Office devido à pandemia do coronavírus, discutíamos de forma remota alguns colegas e eu a respeito de uma matéria publicada em um jornal local. A discussão girava em torno dos desafios, dificuldades e diferenças encontradas entre motofretistas e agentes de fiscalização de trânsito. A reportagem denota realidades bastante semelhantes não só entre as duas categorias de profissionais, mas de todos aqueles que não têm a possibilidade de exercerem suas atividades da segurança e conforto de seus lares e, por esse motivo, estão expostos diariamente ao risco de contaminação. No entanto, há um outro risco bem menos divulgado, mas tão nocivo quanto o da contaminação pelo coronavírus. O risco de sermos contaminados e/ou transmitirmos um outro vírus. Porém, esse não é transmitido apenas pelo contato, nem só pelo ar ou por outras formas tradicionais de contaminação. Esse vírus é transmitido pelas redes sociais, pelos veículos de comunicação e pelos mais diversos formadores de opinião. Mas não só isso, a transmissão também se dá através daquele papo no barzinho, no pátio do condomínio e naquele inocente grupo no WhatsApp. Receba novas postagens direto no seu WhatsApp. Todos somos responsáveis pela disseminação desse vírus, quando, do alto de nosso individualismo egoísta, nos sentimos profundamente injustiçados, seja quando nossa pizza chega fria ou nosso remédio demora, seja quando somos autuados por ter estacionado “só um minutinho” em local proibido ou ter atendido ao celular “rapidinho”, só pra dizer que não podia atender porque estava dirigindo. Recentemente perdemos tragicamente mais um colega por conta desse vírus, que pode ser chamado de muitas formas: desprezo, ódio, despreparo, preconceito, desvalorização ou, simplesmente, depressão… tirar a própria vida em pleno local de trabalho não é apenas um dos sintomas desse vírus, mas também um recado aos colegas, à empresa e a toda sociedade: saibamos ouvir antes de julgar; sejamos mais compreensivos e tolerantes com o próximo, independente de qual seja a sua profissão, credo, cor, opção sexual, orientação política…; e, principalmente, sejamos menos críticos. Fico feliz que as pessoas estejam passando a dar, segundo a matéria, o devido valor aos profissionais motofretistas, os conhecidos “motoboys”. É uma pena que tenha sido preciso uma pandemia para que isso acontecesse. Infelizmente, para a categoria dos agentes de trânsito, esse vírus parece ainda estar longe de ter uma vacina… Tem interesse pelo assunto? Gostaria de ler mais textos como esse? Então adquira agora o meu livro!

  • CARRO, NASCIDO EM BERÇO ESPLÊNDIDO

    No decorrer da nossa história, procuramos criar tecnologias que facilitassem a vida. De acordo com a necessidade de cada período as ferramentas criadas evoluíam. Com o início da Revolução Industrial criamos máquinas e métodos que mudaram drasticamente o modo de produção, influenciando as relações sociais. Este momento de grandes transformações, em meados do século XIX e no início do século XX, coincide com o advento de uma máquina de transporte individual que vai transformar sensivelmente toda a sociedade humana: o automóvel. Sobre o automóvel, Giucci [1] vai afirmar que: O automóvel é o símbolo por excelência do moderno no início do século XX. Sua chegada a diferentes partes do mundo ilustra a trajetória irresistível da mobilidade. Chega a máquina bufante, o novo sáurio mecânico, o carro de fogo, envolvido numa nuvem de pó. E montado no cavalo mecânico chega o mensageiro da motorização. Enquanto o arauto medieval levava mensagens, determinava as festas de cavalaria e organizava os registros da nobreza, o piloto introduz o não visto e o estranho, na forma de antecipação do futuro. Vem de longe anunciando grande transformação. Segundo Ballard [1] , a compreensão da identidade ambígua produzida pelo amplo surgimento de máquinas durante o século XX pode ser alcançada com o estudo do automóvel devido ao impacto cultural e subjetivo que este ocasionou. Desde o seu advento, no final do século XIX na Europa, o automóvel cruzou o mundo, conquistando as cidades e transformando-se em protagonista da vida cotidiana. Receba novas postagens direto no seu WhatsApp. Desde o século XVII já se idealizavam veículos automotores impulsionados a vapor. Desde então, diversos experimentos foram sendo feitos simultaneamente em diversos países da Europa e Estados Unidos. No entanto, se consolidou a ideia de que os primeiros automóveis foram, de fato, criados somente a partir do invento do motor de combustão interna à gasolina. Se aceita que esse tipo de motor tenha surgido simultaneamente através do trabalho independente de vários inventores alemães, muito embora se atribua a invenção do primeiro carro ao alemão Karl Benz, no ano de 1885, em Mannheim, patenteando-a no ano seguinte [2] . No Brasil, temos o registro de que o primeiro veículo a rodar no nosso solo tenha sido trazido da França por Santos Dumont, (o “Pai da Aviação”). Segundo o historiador Melo [3] , desde muito jovem, Dumont tinha muito interesse pelas “fascinantes máquinas modernas”. Por isso, em 1890, ele adquiriu seu primeiro carro, um Peugeot, que foi desembarcado no porto de Santos no ano posterior. Acontecimento que causou um enorme alvoroço. Durante a década de 30, algumas empresas estrangeiras, como Ford e General Motors, começaram a investir no país. No entanto, somente após a Segunda Guerra Mundial, com a eleição de Juscelino Kubitscheck para presidente da república, em 1956, que a produção de automóveis de intensificou no país [4] . Segundo Silva [5] , o automóvel surge em meio a um sonho de domínio sobre a natureza, e a “automobilidade” é apresentada como uma conquista social. O automóvel, rapidamente, ganha status de objeto de desejo, reforçado pelas estratégias de propaganda: lema preponderante: conquiste a liberdade! Sobretudo, é incontestável que o automóvel vem se colocando neste lugar como um objeto de desejo, chegando mesmo a assumir um papel de fetiche como mercadoria, fenômeno social e psicológico, onde as mercadorias aparentam ter uma vontade independente de seus produtores. Na “sociedade do espetáculo”, que segundo o sociólogo Guy Debord [6] é a forma de ser da sociedade de consumo que, graças à mídia, é uma sociedade de imagens, o automóvel tornou-se uma das mercadorias mais cobiçadas, em torno da qual o discurso publicitário constrói mitos. Um exemplo bem atual disso é trazido por autores [7] que analisaram o famoso slogan de uma das mais conhecidas redes de postos de gasolina que se diziam “Apaixonados por carros como todo o brasileiro”. Assim, como podemos observar acima, a mídia vem exercendo papel fundamental na consolidação da onipresença do carro, principalmente ao produzir a demanda de possuí-lo. Ninguém procura um determinado produto ou serviço de forma espontânea. Toda demanda, portanto, é produzida pela oferta [8] . Esse processo se torna evidente se prestarmos atenção nas propagandas de carro que surgem a cada ano, pois é vendida a ideia que o carro novo possui um item que o anterior não tinha e que, mesmo esse item não sendo extremamente necessário, é exaltado como tal. Atualmente a mídia se utiliza de artimanhas cada vez mais elaboradas para esse fim, inclusive atribuindo características humanas aos veículos, como: força, potência, beleza. As propagandas também são pensadas de acordo com a cultura na qual elas estão inseridas. Carros voltados ao mercado asiático, por exemplo, possuem faróis mais alongados para se assemelharem aos olhos orientais. E como citado acima, a mídia também tem produzido hábitos, como o do cuidado com o veículo, que se estende ao abastecer o veículo em determinado local, pois o combustível é melhor até a limpeza-veneração do mesmo aos finais de semana. Castro [6] vem ao encontro dessas ideias quando identifica no trabalho da publicidade a transferência de atributos humanos para os produtos a serem vendidos. E a publicidade do automóvel é exemplo clássico de como a mercadoria pode relacionar-se com o consumidor como se fosse um “indivíduo”, que sempre leva vantagem em relação a este. Desta forma o sujeito humano é “reificado”, ou seja, rebaixado à categoria de mera mercadoria, e a mercadoria é “humanizada”. O carro provoca uma total modificação estrutural do nosso entorno, uma adequação da sociedade para servir ao ser supremo automóvel, garantindo a sua utilização hegemônica enquanto meio de transporte [5] . Essa adequação faz com que o carro possua um significado social que o eleva de simples objeto, ferramenta de locomoção, a um nível cultural, que requer um estudo antropológico para entender a sua valoração na sociedade. Sim, antropológico, pois essa valoração produz uma “cultura do carro”, que é expressa em músicas, em expressões de linguagem, em rituais de ablução e, em alguns casos, ele pode representar até mesmo um rito de passagem para a maioridade [9] . Para melhor definir o imaginário que circunda o carro, Macedo [10] utiliza o poema do escritor Fernando Bonassi, que diz ser o carro: O lugar onde se morre esmagado, de repente. O lugar onde se morre de nervoso, aos poucos. O lugar de pobre parir. O lugar de rico crescer. O lugar das meninas darem… Ou descerem. O pinto dos meninos apressados. O lugar de polícia esnobar cidadão. O lugar de cidadão esnobar polícia. O lugar das maiores conquistas nacionais. O lugar das melhores perversões sexuais. O lugar onde presidente acena. O lugar onde voa o ovo. O lugar onde há muito macho. O lugar onde a carne é fraca. O lugar blindado, é dinheiro. O lugar aberto, é convite. O lugar alagado, é prejuízo. O lugar molhado, é gostoso. Um bom lugar pra conversar. Um lugar de arrepiar. Um lugar moderno que passa. Um lugar na lata. Um sonho que consome. No clássico livro Admirável Mundo Novo (Brave New World), de 1932, um futuro hipotético é apresentado, onde é descrita uma sociedade fictícia totalmente mecanizada. As preocupações de Huxley com as consequências da reprodução dirigida estavam intimamente relacionada com o Fordismo, sistema de produção em massa e gestão idealizadas pelo empresário norte-americano Henry Ford que aperfeiçoou a linha de montagem dos automóveis da época. Tanto é que a história se passa em uma era que suplanta o cristianismo, já que a contagem dos anos é seguida pela abreviação “d. F.”, ou seja, depois de Ford, marcando a introdução do Modelo T como data de início desta era. Tão grande foi a sensação proporcionada pelo automóvel no século passado que este passou a figurar como astro também nas telas de cinema. Um dos primeiros e mais memoráveis clássicos a retratar um automóvel a protagonizar um filme foi Se Meu Fusca Falasse… (The Love Bug, 1968), o primeiro de uma série de filmes de Walt Disney que fez muito sucesso nos cinemas, que conta as aventuras de um Volkswagen Fusca chamado Herbie que possuía vida própria. Outro importante espaço de culto ao automóvel remete aos desenhos animados, onde se podia assistir durante as manhãs do canal SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) uma série animada chamada Pole Position. Nela, três irmãos, entre apresentações como dublês e competições de corrida, procuram pelo pai desaparecido e combatem o crime, trabalhando para uma organização secreta homônima. Contavam ainda com a ajuda de dois veículos de alta tecnologia, chamados de “Rodão” e “Wheels”, equipados com unidades de inteligência artificial que conferiam a cada carro personalidades próprias. Nesta mesma época, a Hasbro, uma das maiores empresas de brinquedos do mundo, decide adaptar uma linha de bonecos da japonesa Takara e, para dar suporte à linha ainda sem um enredo, encomenda uma série de quadrinhos da Marvel Comics e desenhos animados, dando origem, em 1984, à franquia Transformers. O sucesso foi tão grande que levou a mais brinquedos e continuações, como animações digitais, animês, jogos de vídeo games até culminar em longas metragens. O enredo de Transformers (2007) é basicamente formado por robôs alienígenas fictícios capazes de transformar seus corpos em objetos inócuos como veículos. Para finalizar esta abordagem calcada em animações infantis, é importante também citar o filme Carros (Cars, 2006), um filme americano de animação em computação gráfica, produzido pela Pixar Animation Studios e distribuído pela Walt Disney Pictures. O enredo aqui tem pouca relevância, o que importa apontar é que Carros é um filme animado com personagens inteiramente não humanas. Diferentemente das obras citadas acima, onde os protagonistas interagem entre humanos com diferentes graus de personalização, como Herbie em Se Meu Fusca Falasse, que ganha nome e vida própria, e, embora apresente uma personalidade definida, não fala ou exibe qualquer movimento ou característica humana; ou no desenho Pole Position, onde artifícios de inteligência artificial são usados para atribuir personalidades próprias aos veículos; ou mesmo em Transformers, onde os autores se valem de atributos alienígenas para justificar as características humanas das máquinas; em Carros, os protagonistas são todos simplesmente carros, adquirindo características totalmente humanas, dispensando completamente a presença de pessoas no enredo. Com isso, podemos esboçar uma primeira ideia sobre a humanização do automóvel. Tanto que, no processo de articulação homem/máquina, já nos é possível confundir as propriedades de cada componente deste composto. Acerca disso Guattari [11] salienta: No ato de dirigir um carro, não é a pessoa enquanto indivíduo, enquanto totalidade egóica que está dirigindo; a individuação desaparece no processo de articulação servo-mecânica com o carro. Quando a direção flui, ela é praticamente automática e a consciência do cogito cartesiano não intervém. Em 1979, Macluhan [9] chamou o carro de “noiva mecânica”, que muitas vezes aparece como objeto sexual. “O plástico que recobre seus bancos (dos carros novos) evoca a integridade do hímen”. Por outro lado, o carro usado, por ter um passado geralmente desconhecido e, com o intuito de valorizá-lo, diversos anunciantes informam que é de único dono e pouco rodado, termo machista também utilizado para definir as mulheres que tiveram poucos parceiros. E onde começa essa valoração do automóvel? Acredito que esse “valor” que é atribuído ao carro foi construído histórico e culturalmente e tem, em grande parte, a sua pedra fundamental no final da segunda guerra mundial. Neste período a indústria automobilística surgiu como forma de sustentar a economia mundial, alternativa à indústria bélica, sendo privilegiada pela reconstrução da Europa, que contava agora com rodovias novas e modernas [12] . Aqui, também, as propagandas começam a explorar, principalmente, a vaidade humana para vender o novo produto. Há também no veículo questões de gênero, pois determinados tipos, categorias, de carros são voltados para o público masculino, feminino ou até mesmo ao público gay. Nesse sentido, Figliuzzi [13] nos leva a importantes indagações: se as qualidades do meu carro são em parte minhas qualidades, se os defeitos dele são meus defeitos, o que acontece quando um carro é eleito como feminino? Será que essa característica impede os homens de utilizá-la? Carro que é apresentado como sendo para um público gay, como se relaciona com o comprador masculino heterossexual? Enfim, contextos da sociedade onde os carros parecem tão humanos quanto nós, pois não se configuram apenas como máquinas, mas como um totem carregado de significados, um espelho da vida social. Só pode ser bem compreendido, então, à luz de uma razão simbólica, porque é investido dos valores da civilização dos “homens de quatro rodas” [9] . Referências: 1. GIUCCI, G. A vida cultural do automóvel: percursos da modernidade cinética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004 (tradução de Alexandre Martins). 2. AUTOMÓVEL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikipédia Foundation, 2014. Disponível em: < pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Autom%C3%B3vel&oldid=38227908 >. Acesso em: 21 fev. 2014. 3. MELO, V. A. O automóvel, o automobilismo e a modernidade no Brasil (1981-1908). Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 30, n. 1, p. 187-203, set. 2008. 4. SANTANA, M. I. História do Automóvel. Infoescola. Disponível em: http://www.infoescola.com/curiosidades/historia-do-automovel/ Acesso em 21 de fevereiro de 2014. 5. SILVA, R. O. O psicólogo na promoção da saúde e prevenção de acidentes de trânsito. In: MARIUZA, Clair Ana e GARCIA, Lucio Fernando (orgs.). Trânsito e mobilidade humana: Psicologia, Educação e Cidadania (pp. 18 – 29) – Porto Alegre: Ideograf / Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2010. 6. CASTRO, V. J. A “humanização” da mercadoria na publicidade. Revista eletrônica do Filocom, 2005. Disponível em: < www.eca.usp.br/nucleosfilocom/existocom/artigo6b.html >. Acesso em: 01 nov. 2012. 7. MORAIS, R. C.; PASCUAL, J. G. & SEVERIANO, M. F. V. “Apaixonados por carros como todo brasileiro” (?): Reflexões frankfurteanas sobre a indústria cultural contemporânea. Estud. pesqui. psicol. [online]. 2011, vol.11, n.3, pp. 873-897. ISSN 1808-4281. 8. BAREMBLITT, G. F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática, 5ed., Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari (Biblioteca Instituto Félix Guattari; 2), 2002. 9. QUEIROZ, R. S. Os automóveis e seus donos. Imaginário – USP, 2006, vol. 12, no 13, 113-122. 10. MACEDO, G. M. (2004). Trânsito, psicologia e subjetividade. Disponível em < www.perkons.com.br/pt/noticia/414/transito–psicologia-e-subjetividade#sthash.jw6nyvM8 > Acesso em: 05 fev. 2014. 11. GUATTARI, F. & ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2005. 12. RUEDA, F. J. M. Psicologia do trânsito ou avaliação psicológica no trânsito: faz-se distinção no Brasil?. In: Conselho Federal de Psicologia. Ano da Avaliação Psicológica (2011). 13. FIGLIUZZI, A. Homens sobre rodas: representações de masculinidades nas páginas da revista Quatro Rodas. 2008. 181f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Tem interesse pelo assunto? 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  • A PRAGA DO TRÂNSITO

    Andava há algum tempo sem escrever, mas essa semana ouvi algo que não pude deixar passar batido. Trabalho no setor de educação do órgão gestor de trânsito da minha cidade. Nessa semana visitamos uma turma da universidade federal no intuito de convidá-los a participar de um projeto específico para o público universitário. Receba novas postagens direto no seu WhatsApp. Minutos antes do início da aula conversávamos com a professora da disciplina esclarecendo dúvidas sobre o projeto e também falando de outros assuntos relacionados ao trânsito. Foi quando, com ar preocupado, ela perguntou: “O que está acontecendo com o trânsito da cidade nesse ano de 2017?!”. Sem entender direito a pergunta, pedi educadamente que fosse mais clara. Ela explicou que estava cada vez mais difícil o trânsito da cidade em função dos congestionamentos. Bem professora, – respondi- com em torno de 400 novos carros emplacados no estado diariamente isso era de se esperar! E a tendência, se nada a respeito for feito, é piorar… Para meu espanto, ela seguiu: “Tinha que haver uma praga!” (no sentido de diminuir o número de carros nas ruas, creio eu). Professora… infelizmente já temos uma praga! Mas poucas pessoas sabem da sua existência. Uma praga que mata mais de 100 pessoas por dia no Brasil. Uma praga que ceifa a vida de mais de 40 mil brasileiros e deixa outras centenas de milhares com sequelas muitas vezes irreversíveis. Uma praga que, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), dizima anualmente cerca de 1,3 milhões, ultrapassando o número de homicídios e até mesmo de mortes em guerras. E que, segundo a mesma organização, se até 2030 não for contida, matará mais que o HIV. Uma praga responsável por gastar, em média, 2% do PIB dos países em desenvolvimento. Que no país leva todos os anos dos cofres públicos o equivalente a duas copas do mundo semelhantes a de 2014. A praga está aí, juntamente com seus números, para quem quiser ver. Mesmo que alguns seguimentos da sociedade pareçam não se preocupar com isso. Em vista disso, fica o questionamento que sempre procuro levar aonde quer que eu vá, com quem quer que eu fale: A quem serve que as pessoas desconheçam esses fatos? Quem se beneficia com a falta de atenção sobre esses números? Até quando fecharemos nossos olhos a isso é esperaremos que uma “praga” faça nossos problemas magicamente desaparecerem? Tem interesse pelo assunto? Gostaria de ler mais textos como esse? Então adquira agora o meu livro!

  • MOBILIDADE RECICLADA E O BARULHO DAS SOLUÇÕES QUE JÁ DEVIAM TER IDO PRO LIXO

    Quem nunca se viu diante da seguinte situação? Você está dirigindo para algum compromisso (para o qual tem certa pressa), acessa uma via local para fugir do congestionamento da avenida, a via é estreita e permite estacionamento de ambos os lados e, quando você se dá conta, o que está parado diante do seu carro? Um caminhão de coleta do lixo. E lá se vai seu horário... Essa cena, tão comum nas cidades brasileiras, revela um dilema urbano silencioso (ou nem tanto): os impactos do atual modelo de coleta de resíduos sólidos. Se você realmente se dedicou em imaginar a cena acima, pôde até ouvi-la em sua mente, pois, para além dos congestionamentos pontuais, há também o barulho dos caminhões — muitas vezes atuando de madrugada ou nas primeiras horas da manhã —, o risco de acidentes, a dificuldade de circulação em áreas estreitas e os conflitos que surgem entre os trabalhadores da limpeza e os moradores apressados. Refletindo sobre como essa logística urbana, embora essencial, poderia ser pensada de forma mais eficiente e menos invasiva, escrevi sobre isso em outro momento aqui no blog, no texto " Ouça o futuro se aproximando " . E, falando em futuro, eis que, recentemente, me deparei com duas iniciativas que mostram, na prática, como isso já está acontecendo. A primeira delas traz o exemplo de Dubai , que apresenta soluções robóticas para a coleta de lixo. Pequenos veículos elétricos, silenciosos e autônomos, circulam por bairros residenciais recolhendo o lixo com precisão e sem interromper o trânsito. Uma coleta quase imperceptível, que parece saída de um filme futurista, mas que já é realidade — totalmente alinhada com o conceito de cidades inteligentes (Smart City). A segunda é ainda mais impressionante: em Varberg, na Suécia, o lixo é transportado por túneis subterrâneos que utilizam tecnologia de vácuo e inteligência artificial. Nada de caminhões, nada de barulho, nada de riscos à mobilidade urbana. Tudo funcionando sob nossos pés — literalmente. Essas inovações nos mostram que a tecnologia, quando bem utilizada, pode ser uma grande aliada da qualidade de vida nas cidades. A coleta de lixo, afinal, não precisa ser um transtorno para cumprir seu papel. Pode ser integrada de forma harmônica ao cotidiano urbano, respeitando o tempo, o descanso e a segurança das pessoas. No fim das contas, talvez a maior ironia seja essa: enquanto buscamos soluções mirabolantes para melhorar a mobilidade urbana — viadutos, aplicativos, semáforos inteligentes — continuamos empacados atrás de um caminhão de lixo, dia após dia. Literalmente. A cidade se move, as demandas mudam, mas seguimos tentando resolver problemas novos com ideias velhas. E se a mobilidade é, por natureza, dinâmica, não estará na hora de jogarmos algumas dessas soluções ultrapassadas no lixo também?

  • OS MORTOS NÃO CHORAM

    O ser humano tem uma capacidade incrível de se adaptar às mais diversas situações. A morte é uma delas. Foi por volta do 4º semestre do curso de Psicologia, durante uma aula de Neuroanatomia, que me dei conta disso. Receba novas postagens direto no seu WhatsApp. Envolta em um odor perturbador de formol e rodeada de cadáveres humanos, uma das minhas colegas de curso me questionou se já havia atendido algum acidente com vítima fatal ao descobrir que eu trabalhava como agente de trânsito. Enquanto manuseava uma peça (nome usado no meio acadêmico para denominar a parte do corpo a qual se está estudando, no caso o cérebro) respondi que sim, alguns. Sua curiosidade parece ter aumentado com a minha resposta. Ela então quis saber qual era a sensação. Respondi que, tirando o sangue, não era muito diferente da situação em que nos encontrávamos. Nada a mais que pedaços de carne inertes e sem vida. Após alguma crítica do tipo “que horror” ou “você não tem coração?” que não lembro bem, tive que explicar o porquê da minha frieza. O fato é que a gente se acostuma. Assim como a gente se acostuma a abrir o jornal ou ligar a televisão e ver os números de mortes no trânsito e não mais se espantar. A gente simplesmente se acostuma. Na primeira ocorrência rola uma náusea. Na segunda uma certa pena. Lá pela quinta ou sexta você já está comendo um pastel enquanto consulta a placa do veículo com a central… faz parte da sua rotina. Antes que você, amigo leitor, me taxe de desumano, insensível ou algo parecido, aviso: há coisas com as quais é impossível de se acostumar. Como com as unhas de uma condutora embriagada cravadas no meu braço, que, enquanto aguardava a ambulância, implorava para que não a deixasse e chorando dizia que queria apenas ver a filha mais uma vez. Ou como quando o motociclista, já em choque pela perda de sangue, que tentava levantar-se e era contido por outros três familiares. Mal sabia que nem se quisesse conseguiria levantar pois, além da sua potente motocicleta que fora parar apenas após chocar-se contra um poste a aproximadamente 200 metros da queda, uns 20 metros antes do ensanguentado motociclista estava sua perna direita sobre o asfalto. Nem tão pouco com a jovem que gritava pedindo para ser tirada das ferragens de um carro capotado enquanto os bombeiros não chegam. Com esse tipo de coisas não há como se acostumar… Então, essa foi minha resposta. Pra ela e pra quem me pergunta até hoje: “Você não tem problemas em atender ocorrências com vítimas fatais?”. Eu digo um grande e sonoro NÃO. Tenho problemas em atender vítimas presas nas ferragens, amputadas, chorando, gritando, agonizando. Tenho problemas de consolar os familiares que chegam depois e percebem que nunca mais vão poder abraçar um filho, que jamais dirá que ama sua esposa novamente ou que não voltará a ouvir aquelas histórias engraçadas que seu pai costumava contar. Com os mortos não tenho problemas, pois os mortos não gritam, não gemem, não sofrem. Ao contrário dos que ficam, os mortos não choram… Tem interesse pelo assunto? Gostaria de ler mais textos como esse? Então adquira agora o meu livro!

  • OS NOSSOS SUBSTITUTOS

    Com a correria que a vida moderna nos impõe, quem nunca pensou em ter um clone pra ajudar nas rotinas diárias? De forma bem humorada, já tratei do assunto em ESTÁ PRONTO PARA DEIXAR SUA CASA NAS MÃOS DE UM ROBÔ? . O fato é que, em função da quarentena à qual fomos submetidos devido à pandemia do coronavírus, um clone para nos substituir naquela arriscada saidinha não seria uma ideia de todo ruim. Receba novas postagens direto no seu WhatsApp! Esta questão me reporta ao filme de ficção científica Substitutos (Surrogates, 2009), protagonizado por Bruce Willis. Baseado em uma história em quadrinhos, mesmo não sendo um grande filme, traz uma ideia bastante interessante: o enredo se dá no ano de 2054, em uma sociedade em que as pessoas, quase na sua totalidade, trocam sua existência diária presencial por uma virtual. Para tanto, elas se utilizam de androides substitutos, os quais podem ser controlados de uma confortável poltrona instalada na segurança do lar do usuário, bem ao estilo Matrix (1999) ou Avatar (2009). Assim, esses se encontram livres de qualquer tipo de violência ou contaminação, já que nada que aconteça com seus robôs pode afetá-los. E o melhor de tudo: esses robôs substitutos poderiam ter a aparência que seus usuários bem entendessem, podendo até mesmo ser do sexo oposto. Como ver um filme assim e não pensar nos dias de hoje? Guardadas as proporções, já não temos nossos “substitutos” disseminados através da internet? O que dizer do polêmico Second Life (Segunda Vida)? Alguém se lembra desse famoso programa criado em meados dos anos 2000, que para muitos era tratado como um jogo, para outros um simulador e para outros tantos uma rede social, no qual se podia simular uma vida em paralelo? Muitos dos seus usuários acabaram migrando para outras redes sociais, como Facebook, Instagram e Twiter. “Lugar” onde os usuários costumam mostrar a vida que a eles convém mostrar, ou seja, viagens, festas, momentos felizes, conquistas… Exatamente como os robôs da ficção científica, sempre belos, saudáveis e felizes. Mesmo ainda distantes dessa realidade tecnológica, já há algumas décadas buscamos nossos substitutos, não em robôs ou androides, mesmo antes do advento de qualquer rede social virtual já dirigíamos “vidas paralelas”, sentados confortavelmente em bancos de couro climatizados, na segurança de um habitáculo projetado com o que havia de mais avançado na área da engenharia, atrás de vidros escuros que nos protegiam da violência urbana, mas que, ambiguamente, já nos punha sem percebermos em isolamento social. Essas máquinas incríveis, que ganharam as ruas e que aos poucos foram ganhando cada vez mais espaço nas cidades modernas, são as mesmas que, além de nos transportarem para locais onde antes nos eram inalcançáveis, também nos protege dos riscos de cidades que há tempos já não são pensadas para nossa circulação, mas para a deles. Sem mencionar a capacidade que elas têm de nos deixar significativamente mais belos… O único inconveniente que esses substitutos ainda não sanaram é que, diferentemente daqueles do filme, o que acontece a eles nas ruas ainda segue afetando os seus usuários, tanto quanto (ou mais que) a pandemia do coronavírus. Tem interesse pelo assunto? Gostaria de ler mais textos como esse? Então adquira agora o meu livro!

  • HETEROCROMIA URBANA: O TRÂNSITO COMO REFLEXO DE NÓS MESMOS

    Outro dia, parado no trânsito da cidade, um detalhe inusitado me chamou a atenção: o carro ao lado rodava com os faróis assimétricos — um projetava luz branca intensa, o outro, amarelada e suave. Aquela pequena desarmonia visual me fez lembrar, curiosamente, da heterocromia, condição em que uma pessoa apresenta olhos de cores diferentes. Um toque de singularidade na biologia humana. Uma espécie de “poesia genética”. Mas no trânsito, essas pequenas assimetrias nem sempre são poéticas. Heterocromia, etimologicamente, significa “cores diferentes”. E é disso que muitas vezes se trata a mobilidade urbana: de uma colcha de retalhos de intenções, prioridades, posturas e políticas que nem sempre conversam entre si. Assim como o carro com faróis desiguais ilumina o caminho de maneira desigual, nós também, como sociedade, lançamos olhares díspares sobre o trânsito. Enquanto alguns enxergam o espaço público como lugar de pressa e performance, outros o vivem como risco e sobrevivência. Há quem veja no volante um símbolo de poder. Outros, uma arma. A sinalização aponta um caminho; o comportamento insiste em outro. E assim seguimos — com um olho na lei, outro no improviso. Essa “heterocromia social” que marca o trânsito nos revela mais do que gostamos de admitir: as diferenças de percepção, a ausência de empatia, a dificuldade de convergência em torno de valores comuns, como o respeito à vida. No fundo, o problema não está nos faróis, mas em quem os acende. Talvez esteja na hora de pensarmos: que tipo de luz temos emitido quando ocupamos o espaço público? Nossos faróis — simbólicos ou reais — iluminam o coletivo ou apenas o nosso próprio caminho? Enxergamos a mobilidade com clareza ou com os olhos embaçados por hábitos e crenças que perpetuam a violência viária? Se a heterocromia nos olhos pode ser natural e até fascinante, no trânsito ela se torna um alerta. Porque quando cada um enxerga a estrada de um jeito, a chance de colisão — de ideias, de condutas e de vidas — aumenta. Talvez o desafio seja esse: alinhar os faróis. Ou melhor, alinhar os olhares.

  • QUANDO A IGNORÂNCIA ASSUME O VOLANTE

    Na década de 1920, Sigmund Freud, o famoso criador da psicanálise, criou um modelo o qual chamou de Teoria da Personalidade. Segundo esse modelo, a psique humana seria formada por três instâncias que interagem e se complementam, que se chamam Id , Ego e Superego . Não vou me aprofundar muito nas questões teóricas, mas para exemplificar, tente pensar naquela famosa cena, bastante utilizada em filmes e desenhos animados, onde o personagem, em situação de indecisão, a partir de um diálogo interno se depara com as figuras de um anjinho e um diabinho, cada qual sugerindo tomar uma decisão diferente. Receba novas postagens direto no seu WhatsApp. Embora não seja o mais cientificamente preciso, esse é o exemplo de mais fácil compreensão. Imagine que você é o Ego , e a todo o momento é influenciado nas suas tomadas de decisões por um diabinho ( Id ), que quer saciar seus desejos mais sombrios e incontroláveis a todo custo; e de outro lado um anjinho ( Superego ), que não cansa de tolir cada movimento seu através do seu jeito controlador. Em outras palavras, o Id atende aos desejos, aos instintos. Já o Superego trata de dar conta da moral, do que é certo ou errado. Crianças costumam ser mais impacientes e imediatistas justamente por não terem seu sistema psíquico totalmente formado. É por esse motivo que os pais precisam fazer o papel do Superego, dando limites a elas. Isso é fundamental para um desenvolvimento saudável. Agora, imagine a seguinte situação: Quem tem filho(s) sabe que a hora das compras no mercado com ele(s) pode ser um grande desafio. No que dependesse das crianças, todos os meses deixaríamos nosso salário inteiro no supermercado somente em doces e guloseimas. No entanto, suponhamos que seu filho recebeu uma educação exemplar. Você enquanto figura parental presente, ativa e responsável conseguiu impor limites ao seu filho, ensinando a ele que nem tudo que está na prateleira pode ser simplesmente empurrado para dentro do carrinho como que se suas posses fossem infinitas. Uma vez no mercado, você combina com seu filho que ele pode escolher uma guloseima (dentre as milhares de opções) para levar pra casa. No entanto, seu filho neste dia resolve escolher aquela que é extremamente prejudicial à saúde. Você, talvez desconhecendo essa informação, pode dar o produto ao seu filho. Ou, enquanto pai (ou mãe) zeloso(a) que é, tem algumas alternativas: a primeira é a de, caso não soubesse do que se tratava a guloseima, pesquisar no rótulo do doce sua composição e, para os mais neuróticos, até buscar na internet informações sobre os componentes do produto. De posse dessas informações, você tem a opção de tentar negociar com a criança a troca daquele produto por um mais saudável ou menos prejudicial (pelo menos), ou ainda a opção de dar aquele produto mesmo assim (na minha opinião a opção mais preocupante), a final, se é aquilo que ela quer é melhor dar de uma vez para não criar ainda mais problemas e nem correr o risco de perder o amor dela. Agora você pode estar se questionando “ mas o que toda essa baboseira psicológica, de supermercado, crianças e guloseimas tem a ver com o trânsito a final?! ” Bem, usemos a seguinte analogia: digamos que o Brasil seja a criança, até mesmo porque, em termos de segurança no trânsito, comparado a outros países, estamos ainda engatinhando… O supermercado seja o nosso trânsito e, finalmente, o pai seja o governo. Entenda que esse artigo não tem qualquer viés político. São diversas promessas de guloseimas que certamente têm encantado uma parcela bastante grande (e imatura, por assim dizer) da população: como o aumento do limite de pontuação na CNH de 20 para 40 pontos, o aumento da validade da CNH de 5 para 10 anos e, por fim, o cancelamento dos radares em rodovias federais, como pontuou recentemente de forma magnífica a colega Mércia Gomes, que é especialista em Legislação de Trânsito ( leia mais sobre ). Fico a me perguntar se mais cedo ou mais tarde não vamos nos deparar em frente a estantes de puxa-puxa os agentes de trânsito pra segurança pública, compotas de etilômetros em desuso ou até mesmo quebra-queixo de air-bags desnecessários nesse grande supermercado que é o trânsito . Vejo ultimamente pessoas nas redes sociais defenderem calorosamente tais medidas, assim como se defendessem seus times de futebol. Não podemos esquecer que, quando se trata de futebol, apenas um dos times perde. No trânsito, entretanto, todos perdemos. Não há empates, só derrotas. E não se perdem só partidas, mas vidas. Não tive ainda capacidade de entender em qual das circunstância essas medidas se enquadram: se em uma imatura ignorância ou em um puro e inconsequente populismo (e nem qual seria o pior dos dois…). Enquanto tento entender, deixo aqui uma breve reflexão aos sensatos amigos leitores: O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete . (Aristóteles) Tem interesse pelo assunto? Gostaria de ler mais textos como esse? Então adquira agora o meu livro!

  • REDUÇÃO DE VELOCIDADE: PRECISAMOS FALAR SOBRE ISSO

    Velocidade é um assunto que já abordei em outro artigo . Recentemente, me deparei com uma notícia que me deixou positivamente surpreso : um vereador porto-alegrense havia entregado na câmara um projeto que previa a redução da velocidade máxima de 60km/h para 50km/h para veículos leves e de 40km/h para os pesados. No entanto, tão surpreso quanto fiquei com a notícias, fiquei com os comentários das pessoas sobre a proposta do vereador. Negativamente, é claro… Embora grande parte da população desconheça esse fato, esse vereador não está reinventando a roda. A redução de velocidade em perímetros urbanos é uma tendência mundial que já virou realidade em diversos países desenvolvidos, sobretudo da Europa. A OMS (Organização Mundial da Saúde) já tem há alguns anos sugerido essa medida para a redução da mortalidade no trânsito. Receba novas postagens direto no seu WhatsApp. Após quase ser execrado, foi o que eu tentei explicar para um gerente do órgão gestor do trânsito onde trabalho após sugerir a mesma redução durante um workshop como forma de alcançar as metas de redução de acidentes fatais buscada pela empresa no ano de 2019. Mas, infelizmente, não é apenas a sociedade civil que desconhece esses dados. Em 2015 tivemos as experiências da redução de velocidade das marginais paulistas Tietê e Pinheiros, nas quais, após alguns meses de redução drástica nos índices de acidentes fatais e aumento da velocidade média de 13km/h para 17km/h, voltou-se atrás e aumentou-se novamente a velocidade numa manobra política visivelmente populista. E mesmo que a preocupação maior não fosse com os acidente, mas única e simplesmente com a fluidez, ainda assim a redução seria uma boa alternativa. O vídeo a baixo explica como a constância na velocidade é capaz de impedir que os engarrafamentos se formem: Usando a referência do vídeo, enquanto os carros autônomos não tomam as ruas e nós não deixamos de dirigir como macacos, quem sabe podemos esboçar alguma mudança não só no trânsito, mas na sociedade como um todo, nos informando melhor, estudando mais e, assim, abandonando um pouco do senso comum e também deixarmos de votar como macacos? Tem interesse pelo assunto? Gostaria de ler mais textos como esse? Então adquira agora o meu livro!

  • UMA DESCOBERTA EXPLOSIVA SOBRE O TRÂNSITO

    No último final de semana, minha esposa e eu assistimos ao recém lançado filme Oppenheimer. Nele, é contada a história de J. Robert Oppenheimer, um físico teórico americano que desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial. Ele liderou o Projeto Manhattan, uma iniciativa ultrassecreta dos Estados Unidos para criar a primeira arma nuclear. No entanto, a criação da bomba levantou questões éticas e morais sobre seu uso. Apesar das preocupações, a bomba foi finalmente utilizada em Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, levando à morte aproximadamente 260 mil pessoas, à rendição do Japão e ao fim da Segunda Guerra Mundial. A contribuição de Oppenheimer foi vital para o sucesso do Projeto Manhattan, mas, após a guerra, ele enfrentou críticas e dilemas pessoais devido ao uso da bomba. Sua história é um exemplo complexo da interseção entre ciência, política e ética. Receba novas postagens direto no seu WhatsApp. Terminado o filme, minha esposa questiona se, na minha opinião, Oppenheimer teve alguma culpa no ataque ao Japão, tendo ele sido um dos maiores responsáveis pela criação da bomba. No meu ponto de vista ele teve tanta culpa quanto Karl Benz tem pelas mortes no trânsito. Não acho razoável, culpar quem criou a ferramenta , ainda que com finalidades bélicas, pelas vidas que ela eventualmente venha a tirar. Além do mais, o Projeto Manhattan não apenas resultou no desenvolvimento da bomba atômica, mas também deixou um legado tecnológico vasto e diversificado. Muitas das tecnologias desenvolvidas originalmente para fins militares encontraram aplicações benéficas em uma variedade de campos, incluindo energia, medicina, ciência dos materiais e pesquisa científica em geral. Ainda que sob protestos da minha esposa, segundo a qual nossas conversas sempre acabam mais cedo ou mais tarde no tema trânsito, não pude deixar de lembrar de uma antiga postagem, onde dois homens das cavernas discutem sobre o potencial da recém descoberta roda de causar mortes no futuro. Não quero aqui de forma alguma minimizar os bombardeios ocorridos em Hiroshima e Nagasaki, um dos episódios, sem sombra de dúvidas, mais lamentáveis da história da humanidade. O fato é que, apenas nos últimos dez anos, o trânsito já ceifou do mundo inteiro uma quantidade de vidas 50 vezes maior. Ou seja, o equivalente à explosão de 100 bombas atômicas! Dessa forma, fica evidente que a descoberta explosiva é que de todas as armas inventadas pelo homem, nenhuma é capaz de tirar tantas vidas de maneira tão natural quanto o automóvel. Tem interesse pelo assunto? Gostaria de ler mais textos como esse? Então adquira agora o meu livro!

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