Para os especialistas em segurança e engenharia de trânsito Eduardo Biavati e Heloísa Martins, a existência de uma estrada ou de um conjunto de vias, as ruas, é condição essencial para o desenvolvimento das cidades. Mas por que tamanha importância? Porque é através das ruas que ocorre toda a circulação de uma cidade, seja de pessoas ou mercadorias. Por isso, para tais autores, não podemos pensar a cidade sem o trânsito.
Porém, o verbo transitar, diferentemente do substantivo trânsito, traz consigo uma conotação mais ampla acerca das trajetórias humanas, remetendo aos percursos sociais inerentes da circulação urbana, enquanto o segundo parece estar invariavelmente associado ao deslocamento físico, sobretudo de veículos automotores. Contudo, como bem se sabe o trânsito não se faz apenas de veículos, mas também de pedestres e bicicletas, por exemplo.
O carro, no entanto, pode certamente ser associado não só à liberdade como a velocidade, pois individualiza o trajeto do sujeito, possibilitando exercer o controle de seus movimentos, permitindo a sensação de domínio espaço-tempo público, que pode se constituir de itinerários pré-definidos. Esses itinerários são definidos pelo condutor do veículo, diferentemente daqueles que precisam utilizar o transporte público.
Com a organização do capitalismo moderno houve a aceleração dos ritmos econômicos. Os meios comunicacionais, a cibernética, as relações virtuais e mesmo o avanço tecnológico dos motores, cada vez mais potentes e velozes, representa economia de tempo e distância, o que acabou por legitimar a máxima: tempo é dinheiro.
Questão que me remete ao filme de ficção científica, O preço do amanhã (In time, 2011), protagonizado por Justin Timberlake e Amanda Seyfried. No enredo futurista onde a ciência conseguiu isolar o gene do envelhecimento, como forma de controlar a superpopulação da terra, as pessoas são geneticamente modificadas para envelhecerem até os 25 anos. Só há um pequeno senão: assim que alcançam certa idade, as pessoas são “programadas” para viver apenas mais um ano. Seu tempo então passa a ser literalmente cronometrado através de um relógio subcutâneo implantado em cada indivíduo. Como efeito, o tempo torna-se a principal moeda de troca, exacerbando as desigualdades sociais. Enquanto os ricos permanecem indefinidamente com a aparência de alguém de 25 anos, tornando-se praticamente imortais, os pobres tem seu tempo contado e precisam lutar dia após dia para conseguirem mais tempo de vida, seja trabalhando para adquiri-lo, seja roubando-o ou mesmo como um pedinte de esmolas.
O tempo, tomando o lugar da vida, como podemos ver na ficção, tornou-se um valor. No entanto, assim como assinala o filósofo alemão Robert Kurz, a aparente economia de tempo que resulta da velocidade trouxe uma inestimável, porém contraditória perda em uma das mais importantes qualidades de nossa vida: a qualidade do próprio tempo de vida. Levando ao que o autor chama de a aniquilação do tempo de vida. Nessa perspectiva, não é difícil acolher a ideia de que quanto mais tempo se economiza menos tempo se tem. Quem encontra tempo, nos dias que correm, para realizar um deslocamento qualquer pela sua cidade a pé ou de bicicleta, seja para algum compromisso, seja para um simples passeio ou mesmo para “matar tempo”? Aliás, Kurz bem lembra que a expressão “matar” tempo é uma invenção genuinamente capitalista.
A professora Gislaine de Macedo e sua aluna Nila Carvalho, em artigo denominado Mobilidade humana e subjetividade: Por uma psicologia da deriva, alertam ainda para a atual forma de significar os espaços e as paisagens decorrentes do mundo contemporâneo. Segundo as autoras, o movimento, o transitório, a velocidade e o tempo volatizam as experiências humanas de viver e conviver. Bem como as formas de significação de nós mesmos, onde o corpo é levado pela sensação de velocidade que ocorre através de motores. Condicionando-os a operações mecânicas, dá-se a sensação de movimento sem que de fato nos movamos. Confundindo velocidade com movimento, o corpo, supostamente livre, se sujeita às experiências diárias tornando-se dócil e passivo em relação ao espaço. Também defendem a ideia de que a experiência contemporânea de locomoção, de ser transportado também transforma o lugar em não-lugar, dessensibiliza os sujeitos na sua relação com o espaço transformando-o em mero lugar de passagem.
Desta forma entende-se porque o espaço público é tratado não apenas como um não-lugar, mas um lugar de ninguém, ao invés de um lugar de todos. Se a velocidade na mobilidade impera nos grandes centros urbanos, atualmente como sinal de progresso, esses lugares deixam de serem lugares de encontro com o outro e com o a cidade. Eles passam a representar simples vias de acesso, de corpos de passagem, a outros não-lugares ou lugares de ninguém. Gislaine de Macedo chega a se questionar se as colisões não seriam um possível sintoma da angústia humana na busca pelo outro, já que os encontros nos espaços urbanos parecem só tornarem-se possíveis nessas ocorrências.
Portanto, é completamente compreensível quando o Engenheiro de Transporte e Sociólogo Eduardo Vasconcellos afirma, parafraseando o poeta Fernando Pessoa, que circular é preciso, viver não é preciso.
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