SOBRE TRÂNSITO, TECNOLOGIA E MENTIRAS QUE CONTAMOS PARA NÓS MESMOS
- Rodrigo Vargas
- 9 de jun.
- 2 min de leitura

Imagine a seguinte cena: você está no trânsito, estressado, atrasado, cercado por motoristas que ignoram toda e qualquer convenção social, desde a seta até o conceito básico de empatia. Falando em empatia, de repente você olha no espelho retrovisor e percebe um veículo colado na sua traseira, dando inúmeros sinais de luz alta. Você, como um motorista consciente e responsável, dá o lado e cede a passagem para o apressadinho. Eis que surge ao seu lado um carro autônomo — desses “possuídos”, como um seguidor meu certa vez descreveu em outro texto com toda sua sinceridade: “essas tranqueiras que têm vontade própria!”
Pois é. Se você acha que dirigir no trânsito brasileiro já exigia fé, coragem e, às vezes, um leve flerte com a ilegalidade, saiba que as máquinas estão chegando. E elas estão aprendendo. Pior: com quem mais entende da famosa arte do "jeitinho". Estão aprendendo com a gente.
Recentemente assisti a dois vídeos que me tiraram o sono — o que, convenhamos, nem é tão difícil para quem precisa encara o trânsito matinal diariamente. Num deles, um robô da Tesla que acaba de "aprender" a jogar pedra, papel e tesoura, explica para o dono seu segredo para a vitória:
No outro vídeo, o historiador Yuval Noah Harari alerta que a inteligência artificial já não se limita a fazer contas e sugerir séries na Netflix. Ela agora compreende, produz e manipula linguagem. E quem domina a linguagem, meus caros, domina o mundo.
Agora pense: se um robô já entende linguagem, emoções e até ironias (talvez melhor do que aquele motorista que te mandou um joinha quando você bateu palmas por ele estar parado em fila dupla), e se ele também já consegue andar, pegar coisas e tomar decisões, o que acontece quando essa entidade se mete no nosso trânsito? Nesse momento, meus amigos, surge a pergunta filosófica que tira o sono de engenheiros, psicólogos, juristas e, quem diria, motoristas de aplicativo: será que as máquinas, para conviverem conosco, também precisarão aprender a burlar as regras?
Porque sejamos honestos — ou não. O trânsito é um teatro coletivo onde fingimos, todos os dias, sermos cidadãos exemplares. Fingimos que respeitamos a faixa, fingimos que a seta existe para ser usada, fingimos que o “é bem rapidinho” não tem impacto algum no coletivo.
Agora, quando olhamos para essas máquinas “possuídas”, bate um certo desconforto. Afinal, se elas começarem a reproduzir nossos próprios desvios éticos, quem, exatamente, está errado? Nós ou elas? E é aqui que mora o plot twist desse artigo: Talvez o maior medo que temos não seja que as máquinas desenvolvam uma vontade própria, mas sim que elas desenvolvam a nossa própria vontade. Cheia de contradições, pequenas mentiras convenientes e aquele pacto silencioso de que “todo mundo faz”.
O que, no fim das contas, realmente nos apavora não é que os robôs comecem a mentir para nós. É que eles sejam honestos demais — e revelem, sem filtro, que quem vive mentindo para si mesmo... somos nós.
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