Há algum tempo, de férias em Florianópolis, foi convidado pelos amigos Professor Carlão e seu sócio Paulo Botelho, para participar de mais um episódio do Podcast em Trânsito. Durante a entrevista, os dois utilizaram uma expressão que me surpreendeu não apenas pela seu pragmatismo, mas principalmente por eu, que me julgo alguém bastante ligado ao mundo automobilístico, nunca a ter ouvido (ou sequer cogitado): RESTO DE RICO.
A expressão que me fez refletir por vários dias me trouxe à tona a lembrança de um polêmico filme. Se você já assistiu ao filme O Poço, sabe que a metáfora da plataforma descendo níveis cheios de banquetes e chegando aos andares inferiores com migalhas (ou pior) é uma crítica brutal à desigualdade. Agora, imagine essa plataforma carregando não pratos requintados, mas carros de luxo usados: BMWs, Audis, Mercedes — todos com um leve cheirinho de perfume caro misturado com aromatizante vencido de coco. Bem-vindo ao poço automobilístico brasileiro, onde os Resto de Rico desfilam como relíquias de um sonho financiado em 48 vezes.
Nos primeiros níveis do poço, lá em cima, estão os milionários que trocam de carro como quem troca de máscara no carnaval. São veículos impecáveis, com couro legítimo, som premium e até massagem nos bancos — provavelmente para aliviar o estresse de ter que escolher entre uma viagem à Europa ou à Ásia. Esses carros, após um ou dois anos de puro luxo, começam a descer pela plataforma invisível do mercado de usados.
Nos níveis intermediários, encontramos aquela galera que se endivida até os pneus para ter um gostinho desse luxo. Eles abrem a porta do carro com a mesma reverência de quem toca na Taça da Libertadores, mesmo que o vidro elétrico emperre de vez em quando. São mestres em usar frases como: “Peguei uma oportunidade única!” ou “Ano 2015, mas rodado só em estrada!” — ignorando que essas estradas provavelmente eram a Transamazônica.
E assim, o carro vai descendo. Quando chega aos níveis mais baixos do poço, a coisa fica tensa. As marcas de pneu no assoalho denunciam as batalhas enfrentadas: IPVA atrasado, vistoria vencida, o som que só toca música em mono e o ar-condicionado que virou uma janela aberta. O Resto de Rico vira um fardo, com mecânicos se tornando uma espécie de psiquiatras automotivos, tentando ressuscitar suspensões, câmbios e o orgulho de quem dirige.
Assim como no filme, a metáfora vai além dos carros. A saga dos Resto de Rico expõe a dura realidade da desigualdade social no Brasil, onde a ilusão de status vem a juros altos e a manutenção desse sonho custa caro — às vezes mais caro que a própria dignidade. Enquanto alguns fazem revisões anuais em concessionárias com café gourmet, outros tentam, com um spray de WD-40 e uma oração, manter a roda girando.
E aí fica a pergunta: será que estamos mesmo subindo de nível ou só tapando os buracos com adesivo cromado? Talvez a verdadeira mudança para esse poço esteja em transformar essa plataforma invisível numa estrada mais justa, onde a mobilidade — seja ela física ou social — não dependa tanto de quantas prestações ainda faltam pagar.
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