E o navio tumbeiro cumpre sua rotina pendular, na alvorada já abarrotado com os degradados, no pavimento segue movimento ondular, mareando o coletivo no Coletivo, sem hora para chegar. Recolhe alguns, esquece outros, sendo Caronte obrigado a indagar: meu Deus, com tanta gente, onde isso vai parar?!
Controlando o leme, o capitão uniformizado, avança driblando o calor, da trama que não deixa respirar, e as intempéries do percurso, rezando pela alforria quando a nau enfim estacionar. Ao lado o companheiro preocupado, a contagem do montante não pode errar, pois ao final de cada viagem, ao dono do navio precisa entregar.
Trancados no paiol de pólvora navegante, paralisados no paiol de pólvora, braços esticados no paiol de pólvora, amordaçados no paiol de pólvora, ouvidos conectados no paiol de pólvora, segregados no paiol de pólvora, passageiros disputam espaço com mascates no paiol de pólvora, essa é a rotina de parte da população que nem sequer pode gritar. Quando indagada por microfones ávidos por retratar a mazela do dia, “Quo Vadis?”, murmura: ao matadouro, não tenho como me furtar.
De um lado os amontoados no paiol de pólvora, sufocados no paiol de pólvora, estigmatizados no paiol de pólvora, atrasados no paiol de pólvora, vulnerabilizados no paiol de pólvora, revoltados no paiol de pólvora, desumanizados pelo paiol de pólvora. Do outro lado os escandalizados com o paiol de pólvora manifestando sensibilidade ocasional, “miopias corrigidas?”, ante tamanha hipocrisia, eis a pergunta retórica que não se pode calar.
Assim segue a população nas metrópoles brasileiras, refém de um modelo de mobilidade urbana que prioriza as demandas dos veículos individuais motorizados. Marginalizada por políticas habitacionais excludentes, higienistas. Expectadora da incapacidade do Estado em retirar do papel o que preconiza as letras normativas, sugerindo eterna utopia. Vai-se acentuando as iniquidades experimentadas pelos segmentos sociais mais carentes, reiteradamente alijados do que se entende como cidadania.
Contam moedas na carteira, sobe número, desce número, mas a contabilidade improvisada logo diz: não dá! E de quatro em quatro anos a “generosidade” republicada promete trem, promete veículo leve sobre trilhos – VLT, promete metrô, promete mais alguns vinténs, promete moradia, promete até franquia, mas tudo segue como está.
Céu cinza, pneu queimado, povo na rua a reclamar, um engravatado diz que vai resolver, outro diz que o problema é alheio, assim o protesto segue o dia inteiro. O motorista fica enfezado, o cobrador segue preocupado, o homem não cede o lugar, a criança chora, o “velho” se conforma, o adolescente ignora, todos vencidos pelo cansaço, sabem, a melhoria, está difícil de alcançar, é a sina coletiva que nem mesmo o Carpinteiro parece ser capaz de alterar.
O crepúsculo chega, novamente todos apertados no paiol de pólvora, todos suados no paiol de pólvora, por algum tempo, todos mascarados no paiol de pólvora, adoecidos pelo paiol de pólvora, mas agradecendo por um paiol de pólvora.
Noticiam o paiol de pólvora, simulam preocupação com o paiol de pólvora, discutem soluções para o paiol de pólvora, emulam intimidade com o paiol de pólvora, mas ninguém deseja estar no paiol de pólvora.
Faísca lançada, pólvora corrida, nem mesmo toda a água do mar poderá apagar. BUM! A imprensa já tem novamente o que pautar.
Referência: Inspirado na Letra da Música "Paiol de Pólvora" com letra de Vinícius de Moraes
Um privilégio poder contribuir, poder compartilhar um pouco da minha experiência enquanto usuária cativa do Transporte Público Coletivo. Parabéns, Rodrigo, pelo espaço e pelo engajamento junto às causas atinentes à mobilidade urbana.